Mulheres Negras e a Cidade

Por Ednéia Gonçalves

(…) O espaço por suas características e por seu funcionamento, pelo que ele oferece a alguns e recusa a outros, pela seleção de localização feita entre as atividades e entre os homens, é o resultado de uma práxis coletiva que reproduz as relações sociais, (…) o espaço evolui pelo movimento da sociedade total. (SANTOS, 1978, p. 171)

Milton Santos

Peço licença à Ana Laura, dona da trajetória que me inspira, a revisitar as diferentes possibilidades e dimensões da luta das mulheres pretas pelo direito à cidade. A ‘escrevivência’ de Ana reforça minha crença na potência das pequenas e grandes rodas como espaço de aprendizado em direção a uma sociedade mais equitativa e antirracista.

Do Jardim Vera Cruz na periferia de São Paulo, meu território, à Barueri de Ana Laura, para nós, mulheres pretas, o chão que pisamos nunca é apenas asfalto: é sempre memória, sabedoria, terra e pertença, pois as experiências individuais e coletivas que nos movem são derivadas do enfrentamento diário pela sobrevivência em um ambiente estruturalmente racista.

Por essa razão, refletir sobre as implicações do racismo no processo de apropriação e circulação da população negra nas cidades é também um exercício de identificação desse território como mais um espaço de luta contra o apagamento de nossa presença na história econômica, social, cultural e religiosa que atinge as mulheres negras interseccionando violências, discriminações e opressões.

Trabalhar, estudar, maternar, amar, morar, alugar, permanecer viva… O direito à livre circulação ainda é uma abstração, tendo em vista que as experiências individuais e coletivas que incidem na construção de vínculos com esse território se baseiam, sobretudo, na hostilidade ao nosso corpo e à história que ele representa.

Questionar a ideia que se esconde atrás da sentença “morar longe” é essencial para a compreensão da específica e turbulenta relação entre o racismo que estrutura a cidade e a resistência da população negra a realizar o ideal de subalternidade que a branquitude historicamente teima em nos impingir.

Foto da fachada de uma casa de número 18, com uma mulher negra de costas, em frente à porta.
Foto: Leo Silva

A visão da periferia como espaço de pausa, intervalo, ausências… contém em seu DNA a ideia de que “a vida está lá fora”, guardada neste outro lugar imaginário onde reside o prazer, a festa, o dinheiro, a vida. Essa visão “casa grande e senzala”, que até hoje inspira políticas públicas e alimenta o imaginário racista e separatista, contribui fortemente para a permanência dos quartos de empregada, uniformes alvos e elevadores de serviço, que escandalosa ou disfarçadamente resistem na cidade fortalecendo e reinventando as armadilhas discriminatórias de sempre.

A rede de acolhimento que tecemos dentro de casa e em coletivos como o Emancipa é o que nos fortalece para o embate da porta para fora. Essa rede se estrutura a partir das complexas tramas de religiosidade, cultura, resistência e reexistência, e representa a possibilidade de construir novas formas de vivenciar o feminino e o feminismo em ambientes hostis ao nosso corpo, nossos filhos, nossa vida, nossas escolhas, nossa cultura… e nosso direito de intervir e inspirar políticas públicas fundadas nas demandas das diferentes presenças que compõem o mosaico das cidades.

A efervescência política e cultural da periferia que repercute e se impõe como vanguarda no aprimoramento da democracia e das lutas por igualdade em nosso país é fruto da teia de complexidades, singularidades e resistências que constituem a identidade negra e sua capacidade de reexistir, construindo novas formas de vivenciar a negritude, o desassossego e a liberdade. Assim nos ensinou Abdias do Nascimento:

A cristalização dos nossos conceitos, definições ou princípios deve exprimir a vivência de cultura e de práxis da coletividade negra, deve incorporar nossa integridade de ser total em nosso tempo histórico, enriquecendo e aumentando nossa capacidade de luta. (NASCIMENTO, 2019, p. 289)


Ednéia Gonçalves é socióloga, educadora e coordenadora na ONG Ação Educativa, atua na elaboração e avaliação de projetos educativos e como formadora de professoras e gestoras no Brasil e em diferentes países do continente africano.

Texto originalmente publicado em Recortes de uma cidade por vir / Instituto Pólis, edição e organização Cássia Caneco [et al.]. – São Paulo: Instituto Pólis, 2020.