Texto originalmente publicado em Recortes de uma cidade por vir / Instituto Pólis, edição e organização Cássia Caneco [et al.]. – São Paulo: Instituto Pólis, 2020.
Por Amara Moira
Travesti, bissexual, feminista, doutora em teoria e crítica literária pela Unicamp, autora do livro autobiográfico E se eu fosse puta, entre outras publicações, colunista da Mídia Ninja e professora de literatura no pré-vestibular Descomplica.
A experiência da cidade: antes e depois.
Vinte e nove anos em que transitei pelas ruas de cidades grandes e pequenas sem maiores preocupações do que um atropelamento, um furto, assalto a mão armada, eu e a minha máscara de pelos faciais, a minha pele branca, roupas bem cuidadas e um português normativo. Existindo à época como homem branco cisgênero, com cara de heterossexual, não afeminado, magro, sem deficiência e nitidamente oriundo das classes médias urbanas, as cidades abriam suas portas para mim e eu sentia enorme prazer em percorrer, o máximo possível de transporte público ou a pé, suas ruas e espaços centrais. Nascida e crescida em Campinas, mas desde o começo da vida adulta vindo sempre a São Paulo para acompanhar a vasta programação cultural da cidade, era na capital também que eu me permitia explorar mais livremente a minha sexualidade e afetividade.
Recorri à expressão “cara de heterossexual” por conta da forma como a sociedade me lia (e também como eu, por precaução, me deixava ler), mas desde princípios da adolescência eu já me entendia como bi, sendo a minha orientação revelada / confessada somente a amigos próximos (nenhum deles LGBTQIA+) e, logo após os dezoito anos, descoberta pelos meus pais. A descoberta da minha orientação sexual por meus pais foi motivo de grande tensão na família, chegando ao ponto de eu propor que, se fosse difícil demais conviver comigo a partir dali, eles pelo menos me apoiassem financeiramente nos primeiros meses da faculdade em que eu tinha acabado de ingressar, aí assim que eu conseguisse emprego não precisaríamos mais nos ver. Tive a sorte, ou talvez o privilégio, de pertencer a uma família que preferiu ignorar esse ponto específico sobre mim para que eu pudesse continuar fazendo parte dela, mas poderia não ter sido assim e eu própria não tinha como antecipar a reação deles, elementos importantes para que eu hoje entenda a maneira como se construíram minhas primeiras experiências afetivas e sexuais fora da norma. As que contavam com o apoio e incentivo da sociedade, ou seja, envolvendo a pessoa que eu fui e mulheres cisgêneras, transcorriam sem problemas, ainda que fosse grande a cobrança (de familiares e amigos) para que eu me relacionasse apenas com as que estivessem dentro de uma certa conformidade corporal. Todas as outras experiências, no entanto, tiveram que se fazer às sombras, pois cedo descobri que elas não estavam no rol das “aceitáveis”.
E eis o peso de existir num mundo em que parte das relações afetivas e sexuais desejadas por mim eram consideradas abjetas, absurdas. Eis também o peso de ver-me em relações sobre as quais eu não podia conversar com ninguém. Como não internalizar esse olhar de vergonha e abjeção, tendo sido criada pela LGBTfobia desde o berço? E, mesmo suspeitando que esse olhar, em alguma medida, fosse injusto, como impedir que eu me visse a partir desse prisma? No meu caso, nunca se tratou de uma questão religiosa, pois minha família, a despeito de ser católica e participar dos ritos religiosos fundamentais do catolicismo (missa todo o domingo, catequese, crisma, encontro de jovens e casais, etc.), sempre o fez de forma mecânica, sem conseguir impor verdade a essas vivências. Tanto é que por volta dos treze, catorze anos eu já me afirmava, dentro e fora de casa, uma pessoa ateia.
A religiosidade, portanto, pouco impactou na forma como eu me entendia. Não foi também o que levou meus pais a sofrerem tanto quando me assumi bissexual, mais de quinze anos atrás. O que de fato pesou foi mesmo a LGBTfobia, que se foi sim, por um lado, historicamente alimentada pelas religiosidades cristãs1, por outro, contou também com a colaboração do Estado para se implantar de vez em nossa cultura: o compilado jurídico que, desde começos do século XVI até fins do século XIX vigorou no Brasil, as Ordenações Filipinas, previa penas como açoite e degredo para o crime de “homem que se vestir em trajos de mulher, ou mulher em trajos de homem” (Livro V, título XXXIV) e penas ainda piores para o de sodomia, como fogueira, expropriação de todos os bens, com metade indo para o Estado e a outra metade para o responsável pela acusação, sem contar o fato de tornar os filhos e netos do condenado “inhabiles e infames, assi como os daquelles que commetem crime de Lesa Magestade” (Livro V, título XIII).
A pessoa que soubesse de alguém que cometera sodomia e não o denunciasse também seria punida, dessa vez com o degredo e a perda de seus bens.
Durante séculos, tal legislação foi, em boa medida, a responsável por jogar não só a sociedade, como nossas próprias famílias contra nós e não é possível compreender o sentido pleno da frase (ainda tão recorrente em nossos dias) “prefiro filho/a morto/a a viado/sapatão/travesti” sem fazermos essa recuperação histórica. A pessoa não pagava sozinha por esse crime: sua família seria profundamente afetada também. E essa recapitulação é necessária para entendermos a segregação radical em que se criou a comunidade LGBTQIA+ no Brasil até muito recentemente.
Importante pontuar que, com o Código Penal de 1890, o termo “sodomia” deixa de vir nomeado, o que casava com a proposta de descriminalizar as relações sexuais que envolvessem adultos, mas indivíduos seguiam sendo penalizados quando havia a participação de um menor (“atentado contra o pudor”, Art. 266), quando a prática ocorria fora do espaço doméstico (“ultraje público ao pudor”, Art. 282) ou quando podia ser enquadrada como “prostituição masculina” (“Dos Vadios e Capoeiras: deixar de exercitar profissão, officio, ou qualquer mister em que ganhe a vida, não possuindo meios de subsistencia e domicilio certo em que habite; prover a subsistencia por meio de occupação prohibida por lei, ou manifestamente offensiva da moral e dos bons costumes”, Art. 399).
Contudo, a prática de “disfarçar o sexo, tomando trajos impróprios do seu e trazê-los publicamente para enganar” (Art. 379) continuava no rol das condutas puníveis pelo Estado (“prisão celular por quinze a sessenta dias”). Com o Código Penal de 1940 este segundo ponto também deixa de figurar e, no entanto, mais uma vez o que se verifica é a manutenção da perseguição a essas condutas e indivíduos.
Quem nos ajuda a entender essa contradição, sobretudo no que toca às travestis, é o delegado Guido Fonseca, responsável por chefiar, em 1976, uma equipe incumbida de realizar um pioneiro “estudo de criminologia sobre as travestis e a contravenção penal de vadiagem” (Ocanha, 2014, p.156). “Prostituição masculina”, o último capítulo de seu livro História da prostituição em São Paulo (1982), teve esse estudo como base e se converteu numa importante fonte de dados sobre a história trans do país. O “masculina” do título remete indistintamente à prostituição exercida por homens cisgêneros e por travestis, mas seu foco serão elas, que, segundo o autor, constituem “o fato verdadeiramente novo na prostituição de nossos dias” (p.215). No texto, o delegado afirma que já no começo do século XX a velha Praça da República “era local frequentado por travestis” (p.221), apresentando inclusive um precioso depoimento colhido de uma delas nos inquéritos que a polícia fez contra essa população em 1936/1937 (p.222):
“Chegou 1930… De novo volto à Paulicéia e, já bastante saudoso, comecei a prostituir-me com todos os homens que me faziam a corte. Tornei-me vaidoso, chegando ao ponto de julgar-me mulher. Já depilava as sobrancelhas, empoava-me, passava ‘baton’ nos lábios e saía à cata de homens que logo me seguiam. E não era um; eram muitos”.
O relato é importantíssimo por explicitar que, antes mesmo da invenção de hormônios sintéticos e das cirurgias de redesignação sexual (a famosa “mudança de sexo”), já era possível encontrar, por aqui, indivíduos com subjetividades que hoje denominaríamos transgêneras. Fonseca aborda, na sequência, a passagem da “prostituição, por assim dizer, envergonhada”, típica dessa primeira época, para aquela que passará a se fazer predominante à medida que as tecnologias de transformação corporal forem se desenvolvendo e se tornando acessíveis (pp.223-4):
“Hoje, não parecem sentir vergonha de sua anormalidade. Acintosamente trajados como mulheres fazem o ‘trottoir’ pelas ruas, avenidas e praças da cidade disputando os melhores pontos com as meretrizes e sempre levando vantagem”.
Ainda sobre esse segundo momento, o delegado destaca que algumas travestis, à custa de “hormônios” e “pequenas cirurgias (introdução de silicone)”, atingiram “um dos seus objetivos mais caros, ou seja, uma semelhança quase perfeita com a mulher”, chegando “a enganar até o mais perspicaz observador” (p.229). Essas pontuações, que poderíamos pensar elogiosas, servem contudo para preparar o texto para o seu desfecho, onde Fonseca apresenta as estratégias que a Justiça vinha utilizando para tentar inviabilizar essa modalidade de prostituição e, ao mesmo tempo, a própria existência das travestis.
Segundo o autor, era consenso entre os estudiosos que a prostituição (dita) feminina, i.e., exercida por mulheres cisgêneras, seria “um mal necessário”, com “uma importante função social, qual seja, a de preservar a moralidade dos lares, a pureza dos costumes no seio das famílias” (p.230). Sendo assim, não faria sentido aplicar a ela o crime de vadiagem (art. 59 do Decreto-Lei 3.688/1941, “Entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover à própria subsistência mediante ocupação ilícita”). Essa não seria, no entanto, a opinião sua e de parte dos magistrados no que toca à prostituição das travestis. Considerem-se as palavras da apelação do procurador José Fernando de Mafra Carbonieri, trazida por Fonseca para ilustrar esse outro entendimento (p.233):
“O homossexual que confessadamente vive da prostituição masculina, fazendo o ‘trottoir’ como uma mulher, está praticando a contravenção da vadiagem. Ao contrário deste, a prostituta não explora parasitariamente uma anormalidade pessoal, mas social”.
Outro ponto do estudo que merece atenção é a alegação de muitas travestis, tratada com desdém pelo delegado, de que “devido às suas aparências por demais afeminadas as chances no mercado de trabalho são limitadas” (p.227).
Em entrevista concedida a James N. Green (Além do Carnaval: A homossexualidade masculina no Brasil do século XX, 1999, pp.414-5), importante historiador da cultura LGBTQIA+ brasileira, Fonseca chega mesmo a admitir que o propósito de prendê-las era afetar sua capacidade de subsistência, o que ou lhes levaria a abandonar a jurisdição do delegado ou a ter que buscar outro tipo de emprego (nas entrelinhas, fica claro que essa possibilidade envolveria o abandono da identidade travesti).
Com o crescimento do desemprego, foi se tornando cada vez mais absurda a ideia de, mediante a contravenção penal da vadiagem, prender-se uma pessoa por ela não possuir um vínculo empregatício formal e a aplicação da lei começou, então, a ser abandonada.
Mas esse histórico de perseguições foi decisivo para que ainda hoje travestis estejam dando os primeiros passos rumo à plena ocupação do espaço urbano. Como se vê, a prostituição desde cedo foi a profissão que lhes permitiu existir (único espaço em que seus nomes e gênero eram respeitados, profissão que, inclusive, cobrava delas que desenvolvessem ao máximo sua identidade feminina), mas uma prostituição exercida em meio a enormes vulnerabilidades, com o Estado tentando inclusive impedi-las de exercê-la.

Esse parêntese foi necessário porque, se as maiores dificuldades que eu vivia eram a princípio por ser bissexual (o que implicou em construir parte considerável das minhas experiências afetivas e sexuais nas sombras da sociedade, em dark rooms, banheirões e chats de bate papo, por muito tempo não me sendo possível sequer construir uma rede de amizades LGBTQIA+), em determinado momento eu acabei me deparando também com a minha própria transição de gênero, o que ampliou consideravelmente os obstáculos à minha frente.
Antes de me entender como travesti e de assumir essa identidade (o que só foi acontecer em 2014, quando eu já contava 29 anos), era possível manter minha bissexualidade estrategicamente no armário, o que me facilitava acesso a empregos e me protegia de agressões e insultos na rua, na escola e faculdade, dentro de casa, etc. Essa possibilidade de me manter no armário, no entanto, era ao mesmo tempo uma segurança e uma prisão, pois o medo do rechaço público me levava a me esconder e quanto mais tempo eu passava escondida, mais difícil era imaginar eu me livrando dessa “segurança”.
O fato de não conseguir me adequar à norma, ou seja, de não conseguir suprimir minha bissexualidade, foi também alimentando dentro de mim uma aversão a mim mesma e, já que eu não podia me livrar do desejo que sentia, esperava que a minha sexualidade, ao mesmo tempo que me desse prazer, servisse também como punição por eu ser quem eu era.
É assim que hoje entendo o comportamento de risco que assumi nesses primeiros anos de experimentação sexual, correndo atrás de exames de sangue a cada 6 meses e sentindo um misto de alívio e frustração quando me deparava com o resultado negativo (alívio por motivos óbvios, frustração por mais uma vez não ter sido punida – eu cheguei mesmo a fantasiar que, quando eu contraísse HIV [porque era uma certeza que aconteceria], eu buscaria uma forma de cortar por completo a minha vida sexual e passaria a viver em função dos estudos e trabalho).
Quem precisa embrenhar-se em parques e becos escuros, ou box de banheiros públicos, para poder transar, para poder viver as experiências afetivas e sexuais que anseia?
A perseguição a LGBTQIA+s nos expulsou de nossos lares e empregos, jogou nossas famílias e amigos contra nós, não raro fazendo com que nós mesmos e mesmas nos odiássemos, e em boa medida só nos permite vivenciar o prazer dentro dessa extrema precariedade, correndo sempre o risco de adoecermos ou sermos presos e chantageados.
Com a minha transição, porém, o armário deixa de ser uma possibilidade, pois meu corpo me denuncia aonde quer que eu esteja, independente do que eu faça. Aqui começa um outro estágio da minha relação com a cidade, estágio em que descubro que meu corpo não só não impõe mais respeito, como agora parece pedir para ser olhado, tocado e agredido. Durante os 29 anos que existi como homem, nunca ninguém tentou tocar-me sem meu consentimento, mas bastou eu começar a ser lida como travesti para passar a viver experiências recorrentes de assédio e abuso no espaço público.
Nota de rodapé 1: Levíticos 20:13 e Deuteronômio 22:5 são passagens bíblicas conhecidas pela condenação a práticas que hoje poderíamos chamar de LGBTQIA+, no caso, respectivamente, a sodomia e o vestir-se com roupas atribuídas a outro gênero (que não o que atribuíram a essa pessoa ao nascer). Mas a questão vai além, uma vez que, depois de judeus e cristãos-novos, os sodomitas foram o grupo mais perseguido pela Santa Inquisição durante o Brasil Colônia.