No Brasil, a pandemia do coronavírus agravou desigualdades e colocou em maior vulnerabilidade trabalhadoras negras. As trabalhadoras domésticas, categoria formada em grande parte por mulheres negras, atravessam as cidades diariamente no transporte público precário, expostas à insegurança e também dependem de políticas públicas de moradia, saúde e educação para garantir o mínimo às suas famílias.
Segundo o DIEESE, em 2020, com o impacto a pandemia, 1,6 milhões de trabalhadoras domésticas perderam seus trabalhos, sendo que 400 mil tinham carteira assinada e 1,2 milhões não tinham vínculo formal de trabalho.
No Dia 27 de abril, Dia das Trabalhadoras Domésticas, entrevistamos Luiza Batista, presidenta da Fenatrad (Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas) e presidenta do O Sindicato das Trabalhadoras Domésticas de Pernambuco sobre as aproximações na luta por direitos para o trabalho doméstico e o direito à cidade. Conversamos sobre a realidade e rotina das trabalhadoras, especialmente as negras, as consequências da pandemia e como a luta por cidades democráticas é uma luta de todas e todos.
Confira abaixo:
Que avaliação você faz de 2020 e 2021, quais são os principais desafios para trabalhadoras domésticas no Brasil com a pandemia?
Há 85 anos nós, trabalhadoras domésticas, lutamos para mostrar para a sociedade que o nosso trabalho é um trabalho digno e decente, e é um trabalho que precisa ser respeitado e tratado como todas as outras categorias de trabalhadores, com direitos, com deveres.
A partir do momento em que a gente faz uma entrevista para trabalho, os deveres já são apresentados, mas os direitos ninguém fala. Acontece que a gente conquistou direitos que não são respeitados. Aí veio 2020 e a pandemia foi devastadora para muitas trabalhadoras, para o mundo como um todo, mas nós estamos em situação mais vulnerável. Muitas trabalhadoras domésticas perderam o trabalho e passando por situações como a de não ter como pagar aluguel e serem despejadas.
A pandemia veio para escancarar algumas coisas que a sociedade sempre tentou jogar debaixo do tapete. É a falta de respeito pelos nossos direitos, a perda de postos de trabalho. Segundo o DIEESE mais de um milhão de trabalhadoras domésticas perderam seus empregos. Foi o terceiro maior segmento no ramo de serviços.
Quem tinha carteira assinada e o empregador suspendeu a contratação ainda conseguiu receber o auxílio, mas quem não tinha ficou sem opção. Teve empregador que disse que a trabalhadora não poderia ficar indo e vindo para sua casa, por causa do vírus. Então ela teria que decidir entre ficar na casa do empregador ou ser demitida.
O ano de 2020 para o trabalho doméstico foi muito pesado, muito difícil. Teve o caso da Mirtes Renata, que foi trabalhar mesmo no período do lockdown e seu filho morreu aos cuidados da empregadora. Isso quando o trabalho doméstico não foi considerado serviço essencial em Pernambuco.
Foi também um ano em que foram descobertas várias situações de trabalhadores em condição análogas à escravidão. A pandemia escancarou a servidão da casa grande, a cultura do eu estou pagando então eu posso exigir o que eu quiser, não interessa se aquela pessoa tem direitos garantidos ou não.
Então a Fenatrad está o tempo todo denunciando, recebendo mulheres que querem ajuda, mas o grande problema é que muitos têm medo de se identificar, de perder o emprego. O auxílio emergencial nem todas puderam acessar. Isso foi em 2020, mas chega em 2021 e essas desigualdades continuam.
A maior parte das trabalhadoras domésticas são mulheres negras. Quando começou a reabertura do comércio, como foi para a trabalhadores domésticas, especialmente as negras?
Nós não temos, infelizmente, o número de trabalhadoras domésticas que foram contaminadas pelo coronavírus e que vieram a falecer. Esse é um dado que seria importante para nós. Uma coisa importante é lembrar que a primeira morte no Brasil pela covid foi uma trabalhadora doméstica, que se contaminou pelos empregadores, pessoas de classe média, que voltaram de uma viagem da Itália.
Esse vírus não chegou aqui pela classe operária. Quando ela começou a apresentar os sintomas, para ela foi fatal porque ela já tinha comorbidades, já tinha problemas. Tivemos relatos praticamente todos os dias de trabalhadores que ligam dizendo que o patrão está com covid mas que estão indo trabalhar por que não foram liberadas.
Hoje, quando você chegar nas unidades de saúde quem está ali não são as pessoas que usam carro particular para se locomover, são as pessoas que usam transporte público. A gente sabe que tem que usar máscara, usar álcool, evitar aglomeração, mas como fazer isso com o transporte público na pandemia?
Como foram consideradas trabalho essencial em alguns estados, você acredita que as trabalhadoras domésticas deveriam ser parte do grupo prioritário da vacinação? Como isso está sendo pleiteado pela categoria?
Nós estamos argumentando que se o nosso trabalho foi considerado essencial, nós também temos que estar como grupo prioritário na vacina. Inclusive tem um projeto de lei que está para ser votado na Câmara sobre essa questão. Houve uma audiência pública na Câmara Federal, o presidente da Comissão de Direitos Humanos e minorias convidou mais de 100 entidades e a Fenatrad teve direito à fala. Isso foi uma das coisas que colocamos: precisamos de vacina, auxílio emergencial, e uma renda básica para as trabalhadoras domésticas que estão em situação de insegurança alimentar, mas que eu prefiro dizer que é situação de fome.
A categoria está precisando urgentemente, tudo isso é para ontem. Na hora de colocar como trabalho essencial nós estávamos lá, mas na hora da vacina nós nem fomos citadas.
Quando estamos dentro da casa de uma pessoa, nós estamos cuidando daquela família, quando estamos em nossa casa estamos cuidando da nossa família, estamos utilizando o transporte público, cuidando muitas vezes de pessoas idosas, com necessidades especiais, de crianças, vulneráveis.
Quando pensa da rotina das trabalhadoras domésticas, quais são as maiores dificuldades no deslocamento nas cidades?
A primeira dificuldade é o transporte público. Uma trabalhadora que mora por exemplo no bairro de Nova Descoberta e trabalha em Boa Viagem, no Recife, é uma distância grande. Ela vai pegar um ônibus até a integração e de lá outra para o trabalho. Tudo isso cedo e já com um ônibus lotado, muitas vezes ela não vai conseguir sentar, ou sequer pegar o primeiro ônibus.
O empregador dela diz que vai sair às 6h da manhã, então ela precisa chegar antes. Ela vai sair de casa o dia ainda está escuro para pegar o primeiro ônibus da linha. Aí vem a questão da insegurança. Onde eu moro, muitas trabalhadoras já foram assaltadas na parada de ônibus. O primeiro ônibus é 4h20, na madrugada, quem está na parada é quem realmente precisa ir trabalhar.
A trabalhadora doméstica sai de casa com o dia ainda escuro, depois do dia trabalhado volta o dia já está totalmente escuro de novo. Tem que enfrentar ônibus lotado, engarrafamento e o risco de ser assaltada na parada até mesmo dentro do ônibus. O transporte público e a segurança são os piores fatores dessa rotina viciosa.
Como seria uma cidade que respeite e garanta direitos para as trabalhadoras domésticas?
Eu tenho 65 anos, não sei se vou ver isso. Mas já conquistamos a carteira de trabalho nesses 85 anos de luta das trabalhadoras domésticas. Mas é algo que vai precisar de uma mudança da sociedade.
Segundo a OIT, o Brasil é o país com maior quantidade de trabalhadoras e trabalhadores domésticos no mundo. Para nós, a questão da moradia, também é fundamental como luta da categoria. A moradia está na constituição, mas infelizmente na pandemia muita gente perdeu o emprego, foi despejado e está morando na rua.
A qualidade de vida urbana não passa só pelo transporte e segurança e moradia, mas também pela saúde. Temos o SUS que precisa ser valorizado e defendido. e nós vemos que mesmo com todas as dificuldades, quem socorre a maior parte da população é o SUS nessa pandemia. A gente precisa de uma cidade com transporte, moradia, saúde e educação de qualidade e creche para irmos trabalhar e nossos filhos ficarem bem cuidados.