No dia 15 de dezembro de 2020 foi publicada, no Diário Oficial da União, a Resolução CGSIM n. 64, de 11 de dezembro de 2020, do Ministério da Economia, que “versa sobre a classificação de risco no direito urbanístico” e impacta diretamente na gestão municipal no que concerne ao licenciamento urbano.
Trata-se de ato administrativo normativo extenso, que pretende submeter o direito urbanístico a uma classificação de risco que, em conformidade com o princípio da liberdade econômica, permita uma flexibilização do licenciamento urbanístico nas cidades brasileiras.
Preliminarmente, antes de qualquer análise quanto ao conteúdo do texto da referida resolução, cabe destacar o descabimento da via escolhida para o tratamento da questão. Ao fazer referência ao “direito urbanístico”, a resolução se remete a matéria objeto de lei, não podendo de forma nenhuma ser objeto de uma resolução. Quaisquer alterações legislativas de normas gerais de direito urbanístico devem ser feitas por lei, com garantia do debate público que é inerente ao processo legislativo e estudos técnicos, em conformidade com as diretrizes do Estatuto da Cidade (art. 2, II), a lei geral de direito urbanístico prevista na Constituição Federal.
Além disso, deve ser destacado o fato de uma norma tão importante, e com potenciais impactos tão severos, ser apresentada por meio de resolução – ato unilateral – em um cenário de desmonte de órgãos e estruturas de participação da sociedade na política urbana nacional.
Aparentemente é mais uma demonstração de autoritarismo que deve ser rechaçada, especialmente considerando seu conteúdo que, em uma aparente complementação da lei da liberdade econômica – 13.874/19 – pretende promover a desregulamentação e afrouxamento da política urbana em favor da propriedade privada e das atividades a ela inerentes, mascarada sob o viés da tal liberdade econômica, como se esta não se submetesse as regras de interesses difusos e coletivos.
Quanto ao mérito, as inconstitucionalidades e ilegalidades são inúmeras, entre as principais, destacamos, em primeiro lugar, que há uma clara violação do pacto federativo, na medida em que a referida resolução invade a competência do município na ordenação e controle do uso do solo (artigo 182 da Constituição Federal e artigo 4º, VI do Estatuto da Cidade), cria obrigações exigindo que os municípios tenham “legislação própria de direito urbanístico para a Lei nº 13.874” e “legislação própria de risco de baixo risco de direito urbanístico”, desconsiderando a autonomia municipal e do Distrito Federal de legislar sobre o seu território e outras inerentes ao pacto federativo.
Em segundo lugar, a submissão do licenciamento urbanístico ao dogma da liberdade econômica em detrimento de outros princípios e regras constitucionais, como a função social da propriedade e a supremacia do interesse público, se configura como uma impropriedade que pretende subverter o sentido teleológico do ordenamento jurídico nacional, levando a uma “supremacia do interesse privado” sem qualquer fundamento jurídico que sustente tal pretensão, contrariando todos os princípios relacionados ao Direito administrativo, urbanístico e ambiental.
Além disso, desconsidera a legislação existente no país sobre licenciamento ambiental, sem qualquer critério ou apresentação de estudo técnico formula o conceito de “risco no direito urbanístico”, acaba com os alvarás e habite-se em obras consideradas de “baixo risco” e, por fim, possibilita que empresas privadas ofereçam os serviços de licenciamento, retirando a competência dos municípios sobre o licenciamento urbanístico.
O licenciamento faz parte de um conjunto de procedimentos de “direito urbanístico”, previsto no artigo 24, I da Constituição Federal e estabelecido por meio de lei municipal, geralmente no Plano Diretor Municipal, para o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade e da cidade e para garantir o bem comum dos habitantes.
No que se refere ao Plano Diretor Municipal, a Resolução enfraquece seu papel na regulação da atividade imobiliária e na determinação da função social da propriedade urbana em contradição a um cenário de reconhecimento, pelo Supremo Tribunal Federal, da primazia do plano diretor no que se refere à regulação urbana (RE 607940).
Por todo exposto, é fundamental o posicionamento da sociedade civil no combate a esta resolução, como forma de reafirmar os preceitos positivados no capítulo da política urbana da Constituição Federal, fruto de árdua luta de movimentos e instituições em busca de cidades mais justas e igualitárias no Brasil.
Neste sentido, a presente nota afirma o posicionamento das entidades signatárias pela sua revogação, sob pena da adoção das providências legais cabíveis para o questionamento de sua validade, como a possibilidade de encaminhar pedido de sustação dos efeitos do ato pelo Congresso Nacional (artigo 49, V, da Constituição Federal) e/ou de Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI, colocando-se como um instrumento de denúncia para toda a sociedade do perigoso processo de privatização das cidades brasileiras em curso nos últimos anos.
Autoras/es desta nota técnica:
João Telmo de Oliveira Filho (OABRS 56248) – Associado do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico – IBDU – http://lattes.cnpq.br/0146713330300986
Tarcyla Fidalgo Ribeiro (OAB/RJ 175.106) – Conselheira Regional Sudeste do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico – IBDU – http://lattes.cnpq.br/3022011488703423
José Marques Carriço (CAU A11248-8) – http://lattes.cnpq.br/5129172395420370
Assinam esta nota técnica:
Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico – IBDU
Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas – FNA
Fórum Nacional de Reforma Urbana – FNRU
Instituto de Arquitetos do Brasil – IAB
Associação Brasileira de Ensino de Arquitetura e Urbanismo – ABEA
Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio de Janeiro – CAU/RJ